Ruído Letícia Ramos

Apresentação

f - Se você avistar uma grande esfera, provavelmente está em perigo[1].  

Em 2013, ouviu-se uma explosão misteriosa no extremo norte da Sibéria[2]. Moradores há 100 quilômetros do local informaram que viram um brilho no céu. Meses depois, cientistas encontraram uma cratera nova de 40 metros de diâmetro por trinta de profundidade em um ponto isolado do Ártico. O que exatamente está causando o surgimento desses enormes buracos no permafrost é um mistério (há algumas hipóteses em curso, mas ainda inconclusivas). Para muitos dos pesquisadores que estudam o Ártico, eles são um sinal inquietante de que essa paisagem fria e em grande parte despovoada está passando por mudanças radicais. O derretimento progressivo do gelo na tundra siberiana tem liberado gases e microrganismos ‘dormentes’ por milhões de anos, vários deles totalmente desconhecidos pela ciência.  

-Quando o gelo derreter e o magnetismo do mundo mudar; esta esfera se multiplicará a se dividirá.

Assim como as crateras siberianas, em Drop Spike[3] - mais recente filme de Leticia Ramos - uma enorme esfera cintilante se materializa por entre montanhas geladas sem maiores explicações. Uma voz robótica anuncia apenas que a esfera aparecerá em vários lugares ao mesmo tempo à medida em que o gelo derreter. A sobreposição daquele elemento estranho à monotonia da paisagem, o tempo dilatado e a incompletude da narrativa geram uma inquietação difícil de classificar, algo entre uma constatação melancólica do fim próximo e a renovação de um vínculo com o que não pode ser circunscrito racionalmente.  

-A esfera aparecerá onde eu planejei

Para criar seus universos visuais particulares, Ramos parte de uma intensa pesquisa técnica, histórica e iconográfica. A cada projeto; o aparato cinematográfico experimental criado pela artista se renova. Para dar forma à cada história é necessário encontrar a combinação perfeita entre situações induzidas/produzidas em laboratório e outras captadas com lentes mais abertas. Nada, ou quase nada, na obra de Leticia Ramos é o que parece ser e é a partir deste lugar fugidio que ela propõe uma reflexão livre sobre o que – ou talvez quem – constitui o que se convenciona chamar de “real”.

A película de celuloide e a emulsão são a matéria prima essencial da artista, meio que ela manipula e reinventa com propriedade e que lhe permite criar uma percepção subjetiva do tempo, entrelaçando o tempo humano, o tempo da matéria e o tempo cósmico. Além de anunciar o “fim dos tempos”, a esfera de Drop Spike tem uma peculiaridade: só é visível a olho nu, não pode ser registrada, mapeada ou divulgada; no filme e no mundo, o gelo derrete e libera um mistério. Assim como o pêndulo que deixa registrado em luz as linhas imprevisíveis de sua trajetória na série de fotogramas Ruído Branco[4], a aparição das esferas são eventos únicos, em que a qualidade da presença é indispensável. A quem é dado ver aquele alerta metafísico? - a quem estiver ali e olhar para o céu com atenção. O mesmo vale para os fotogramas. Para gera-los, Ramos conduz uma espécie de hipnose fotográfica[5], em que o menor desvio ou um erro de cálculo coloca tudo a perder, um olhar desatento não capta as nuances e não se dá conta da complexidade daqueles eventos - ou talvez melhor dizer fenômenos-, fixados sobre o papel emulsionado.  

As imagens de Ramos partilham do mesmo tipo de rigor metodológico empregado nos centros de pesquisa científica, mas sem a pretensão de explicar qualquer coisa. Elas reiteram o mistério e o grau de especulação que ainda residem na mais avançada das descobertas científicas.

O filosófo italiano Federico Campagna[6] reivindica a retomada do pensamento mágico como ferramenta para a revisão do que o ocidente entende como realidade. Ele se propôs pensar o que chama de "técnica" (a lógica capitalista e o pensamento moderno-cientificista) não como algo absoluto e irrevogável, mas como uma entre tantas outras cosmogonias, ou seja, como uma série de emanações, ou fluxos de elaboração de mitos, sendo o primordial a linguagem absoluta dos números. As emanações desta cosmogonia essencialmente ocidental predeterminam a forma como entendemos e circunscrevemos o real. Sob a técnica, o real é numérico e, portanto, pode ser medido, serializado e consequentemente mercantilizado. Logo, o que não pode ser medido, serializado e trocado não “existe”. A “Era da Técnica”, como observa Campagna, é de um niilismo metafísico sem precedentes, em que o que é imensurável e inapreensível é lido como um sinal de superstição ou desconsiderado enquanto conhecimento válido.

- esta esfera aparecerá em vários lugares ao mesmo tempo     

Assim como Campagna, Leticia Ramos defende que a realidade é um emaranhado de contingências variáveis e fugazes. Seu trabalho nos aponta que a resposta aos nossos problemas não está no reino das aparências, mas numa lógica cosmológica oculta que nos une a outros seres e outros tempos. Ao trabalhar a fotografia como um meio de criação de mundos, Ramos reitera que a única solução possível antes do aparecimento da esfera apocalíptica é uma mudança estrutural na maneira como percebemos e nos envolvemos com a realidade. O futuro se parece cada vez menos com o passado, no entanto seguimos acreditando na previsão do tempo e na retórica tecnocrática.  
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Só uma coisa é certa sobre as misteriosas crateras no Ártico[7]: seu aparecimento abriu novas possibilidades de exploração de reservas de gás natural e petróleo antes inacessíveis. Um ciclo vicioso em que os efeitos ambientais deste tipo de extrativismo contribuem para o uso continuado e lucrativo de substâncias altamente poluentes.  

- o céu cairá sobre suas cabeças  

—Fernanda Brenner

Obras
Vistas da exposição