Planisphere Letícia Ramos

Apresentação

Antes de você ter chegado aqui

No livro O Mundo Perdido, encontramos um personagem sem nome que percorre todas as suas 587 páginas. Ele é uma voz, em primeira pessoa, que amarra as narrativas que vão se adensando ao longo de seus únicos dois capítulos: Origem e Organização. O livro conta a história de um grupo de cientistas, provindos de diferentes partes do mundo, que tenta provar a existência de Deus através de estranhos projetos, entre eles a criação de uma máquina fotográfica que registraria a Sua presença na Terra. Há também um projeto que consiste na criação de um programa de computador, baseado em algoritmos do tipo pseudo-código, capaz de traduzir os sons da natureza em linguagem humana. Os sons audíveis de ventos, chuvas, entre outros seriam decifrados em notas músicas que, em um posterior momento, ganhariam letras através de edições digitais que contariam a história do mundo, sua origem e seu futuro. O instrumento utilizado pelos cientistas para captar a ‘voz da natureza’ consiste em uma adaptação de uma harpa de boca e de um themerin, uma espécie de máquina híbrida que necessita do contato e do não-contato humano para produzir sons. É na primeira página do livro que já temos contato com a voz desse narrador:

Ainda não tenho forma definida, sou pura consciência que plana no espaço. Eco de uma substância sem nome. Solidão que desconhece a falta do outro. Sinto uma fúria incontrolável que se expande pelos cinco cantos da escuridão. Há um tempo, eu era uma esfera que girava em torno do meu próprio eixo. Agora sou um quadrado que se multiplica em cubos. Há bilhões de anos atrás, singulares ondas têm varrido as minhas lembranças antes de você ter chegado aqui. Estive sozinho durante muito tempo e o que fiz ninguém viu. Sou puro egoísmo.  

Assim, o leitor, diferente dos personagens do livro, já tem contato com uma voz que atestaria a existência de uma entidade maior, sobre a qual estariam depositadas todas as hipóteses elaboradas sobre a presença consciente mais antiga que assistiu a criação do mundo. No entanto, quem ler o livro até o final será surpreendido por um desfecho diferente do que se imagina no seu início e que persiste por todas as suas 586 páginas. Será somente no último parágrafo da página 587 que encontraremos a resposta que os cientistas e os leitores de O Mundo Perdido buscam no decorrer de seus devaneios e, portanto, não caberia a mim re-escrevê-la aqui. 

Origem e Organização

O conjunto de trabalhos de Letícia Ramos apresentados em PLANISFÉRIOS parece ter estreita ligação com certas aventuras que a ciência e a ficção científica têm encampado durante a sua existência. Tais jornadas tratam do surgimento da Terra, da origem da vida e suas teorias partem de hipóteses sobre o caos. Sabemos que, na Teoria do Caos, um mínimo ruído no início de qualquer evento pode alterar drasticamente o desenrolar das suas ações futuras. Nessa lógica, a ideia de imprevisibilidade e de ordem não-aparente norteiam todas as pesquisas sobre esse assunto, onde o pingar descontrolado de uma torneira e o batimento cardíaco de um cachorro possuem o mesmo ritmo do som que a explosão de uma estrela produz no espaço. 

Assim como em O Mundo Perdido, os terremotos, meteoros, montanhas, chuvas, tempestades, águas profundas e geladas, entre outros elementos e fenômenos da natureza já foram investigados pelos projetos VOSTOK, BITACORA e ERBF.  Em tais propostas, Letícia já elaborou máquinas fotográficas, cenários e traquitanas para construir imagens que os aparatos existentes não alcançam. Alterando a ideia de paisagem como um constructo que nos é dado, a artista já inventou um repertório visual para poder fabricar as suas fotografias. Entretanto, ao observarmos parte dos trabalhos desta exposição, podemos notar um modo distinto de operar: a ausência de lente que media o olhar da artista e a produção de suas imagens. Não se trata do instante fotográfico, mas do registro de eventos que não possuem testemunho. Uma ficção que parte de relatos e hipóteses já consolidados pelos campos científicos que tentam reconstruir constantemente a história do mundo e suas transformações, tão lentas que poderíamos agrupar todos os seus momentos seqüenciais em imagens abstratas e geométricas. Os fractais poderiam representar esse tipo de imagem-síntese, onde a geometria euclidiana não consegue aplicar as suas leis. E onde o caos deve ser intuído como uma idéia de origem que se repete em ciclos, os quais continuarão acontecendo com ou sem a presença de testemunhas.

Nas séries de fotogramas BICHOS e CEU esculturas criadas pela artista são projetadas sobre o papel sensível, criando fotografias que, com ausência de negativos, recusam seus duplos. No conjunto de light photogram, não há sequer objetos, a trajetória da luz sobre a gelatina de prata do papel desenha novos espaços. A mesma luz, conduz a narrativa do filme Blue Night que retrata um tempo que já passou, reconstruindo os fenômenos mais antigos do nosso mundo a partir de pequenos cenários montados em uma microfilmadora planetária.

PLANISFERIO é a representação de um globo terrestre ou de uma esfera sobre um papel, na nova pesquisa da artista, seu universo ficcional planificado por suas sombras. Ampliações, impressões, fotogramas e o filme foram elaborados a partir de esculturas que não vemos nas imagens que nos são apresentadas. Este dado é um elemento interessante para pensarmos a fotografia como uma ideia que antecede, nesta ordem, a lente, o obturador e até mesmo o filme. Ela é, nesse caso, uma antecipação desenhada com luz das formas que nem o olho humano e nem a máquina registram. O futuro e o passado da imagem são confrontados revelando-se em uma espécie de processo alquímico.

Os russos já exploraram esta linha de investigação que parece não se esgotar do mesmo modo que a literatura de ficção científica a compreende. Exemplificando esse último campo, podemos lembrar da máquina que projetava em looping, imagens fantasmagóricas do passado em A invenção de Morel, de Bioy Casares. Da mesma forma, deve ser mencionado o conto Leica, modelo 1932, de Rubens Teixeira Scavone, onde um dos personagens ganha uma máquina que fotografa o passado ou o futuro, mas nunca o presente. É com base nesse mesmo paradoxo que Letícia parece construir as suas imagens. 

– Michel Zózimo

Vistas da exposição