We have everything, but that’s all we have Runo Lagomarsino

Apresentação

A Mendes Wood DM tem o prazer de apresentar a primeira mostra individual do artista suéco radicado em São Paulo, Runo Lagomarsino, na galeria. 

Desde o primeiro momento em que pensei neste texto ou, mais precisamente, num texto que ainda não era este mas que podia acompanhar uma exposição que já se anunciava semelhante à que aqui se vê, pensei em L’Amour Fou. Talvez seja simplesmente pelo título e o amor. Talvez seja porque o último capítulo é uma carta à filha de Breton, então com oito meses de idade, em que o autor afirma que o livro não faz mais que esclarecer a ela o mistério de sua vinda ao mundo. O livro partilha, portanto, com este texto um problema de fundo (ou sua força motriz): como escrever a todos os possíveis leitores, escrevendo realmente a eles, algo de um mistério que tanto tem de somente nosso? Porque eso es inescapable, no hay manera de que te mire, o mire lo que de vos resulta, sin que sea bajo la luz o la sombra de nuestro misterioso reiterado encuentro.

Mas do livro, o que me veio à memória foi o capítulo III, que trata de encontros de outra ordem. As páginas descrevem um passeio de Breton e Giacometti por uma feira de quinquilharias e se detêm nos objetos (uma colher de madeira e uma máscara de metal, respectivamente) que os dois resgatam, entre todas as maravilhas latentes no mercado de pulgas. Me veio à lembrança esse olhar panorâmico e a pesca, ou a espreita e o bote; a atração mutua que parece se estabelecer entre sujeito e objeto, que não permite outro arranjo. Breton também viu a máscara e a descreve com entusiasmo, mas não precisa dela como da colher. Se vê, igualmente, envolvido na equação do outro encontro: estes dois achados que eu e Giacometti juntos descobrimos são a resposta a um desejo que não é um mero desejo de qualquer um de nós, mas sim o desejo de um, ao qual o outro, devido a circunstâncias especiais, se encontra associado.

Sempre me espanto com a precisão dos artefatos que o Runo é capaz de encontrar nesses lugares. Sei que não serviriam para mim e mesmo assim gostaria de tê-los visto primeiro. Tanto que aprendi a me adiantar. E sinto a alegria de ter descoberto o assassino de um livro policial antes do detetive cada vez que um objeto que recolho ou lhe aponto passa com ele pelo caixa. Eu olho detidamente todas as coisas temendo deixar passar, por distração, um tesouro; para ele não importa o tesouro que não o desperte. E as coisas parece que o procuram.


Meu preferido é o caso dos pires brancos com motivos dourados, pela repetição do acaso. Primeiro ele encontrou o da caravela, dias depois, em outra loja de usados, achou o do cavaleiro (e se não tivesse já levado para casa o primeiro provavelmente nem visse o segundo). Eu logo pensei que precisávamos encontrar os outros quatro, porque deve ter sido um jogo de seis e tínhamos que saber o que mais pertencia ao conjunto que une grandes navegações e cruzadas em um jogo de louça. Runo Lagomarsino fez um papel de parede.

Esse papel estampado cobre as paredes antes brancas da galeria com o padrão que se repete: caravela, cavaleiro, caravela, cavaleiro, caravela, cavaleiro... e a cor do ouro. Não é preciso mesmo dizer muito mais. Somente que, e isto se faz possível justamente por se tratar de um desenho encontrado, é interessante imaginar que seja, não a justaposição de algo antes inexistente, mas o retirar de uma camada protetora (ou de maquiagem) que deixa ver, por debaixo da tinta branca que uniformiza a neutralidade desses espaços, a marca, repetida, daquelas navegações e cavalgadas; daquelas conquistas (no sentido de colonização, não de vitória). Como se aquele padrão, assim domesticado, estivesse ainda por baixo de todas as nossas paredes silenciosas. É sobre essa superfície que todo o resto acontece. Sendo dado que assim chegamos onde estamos, para onde ir?

O capítulo III de L’Amour Fou começa dizendo: A partir do momento em que, impelidos pela ânsia da descoberta, os primeiros navegadores tiveram terra à vista, até aquele em que puseram pé em terra firme; a partir do momento em que um cientista ganha a convicção de ser testemunha de um fenômeno que até aí desconhecia, até aquele em que principia a avaliar o alcance do que observou (...) delicadíssimo pincel de fogo delineia ou perfaz, como nenhum outro, o sentido da vida. Para além da ideia, nada desprezível, de que o sentido da vida se faz palpável na duração entre o momento em que se vislumbra um desejo desconhecido e o momento em que se começa a delinear por onde pode levar-nos; há nessa sentença uma aproximação entre o descobrimento do navegante e a descoberta do cientista que aqui também nos interessa.

As lâmpadas incandescentes, que hoje prenunciam algo de nostálgico, aqui estão mantidas em frascos de vidro com tampas de rosca, acompanhadas pela lembrança de uma invenção carregada de futuro; de um futuro luminoso ou, aliás, iluminista. São, podemos dizer, parte do mesmo movimento que ia para o leste a cavalo para o oeste por mar. E sua luz cobriu quase tudo, todas as cidades e quase todo o campo, desde todos os postes e todos os gatos até cada casa, cada cômodo, cada mesa de jantar e cabeceira. Toda lâmpada encerra um tempo, seu tempo. Elas vêm, e não sabem, com suas horas contadas. As incandescentes trazem uma média de 1.000 horas de luz, e de tudo mais que sob essa luz se passa.

Breton teria celebrado a maneira como as lâmpadas de casa começaram a queimar desde que o Runo começou a colecioná-las assim, queimadas. Eu digo que quando não estou olhando ele as chacoalha ou lhes dá um peteleco, mas secretamente temo que a coincidência decorra de algum problema insuspeitado nas instalações elétricas que até então me orgulhava de ter feito pessoalmente. O que há nesses frascos são todos esses erros no sistema, a presumível pancadinha, a sobre-carga, a ruptura, o esgotamento, o fim da vida útil (como se diz); e a repetição dessas falhas no ambiente doméstico. Todos os momentos em que aquilo que se anuncia com a veiculação da eletricidade e a invenção da lâmpada (e com a supremacia do conhecimento racional, que simboliza) se apagam sob nosso teto.

Outro resultado de nossas excursões periódicas a lojas e mercados de segunda-mão, desta vez em São Paulo, foi um par de pinturas com araras. Uma delas, com uma única arara vermelha, nunca deixou a estante. A outra é uma tela mais vertical do que lhe conviria em que duas araras azuis foram pintadas com esforço, uma em primeiro plano, outra mais ao fundo. Essa pintura deu origem a uma série de desenhos que reproduzem vinte e oito vezes o par de pássaros. Entendo esses desenhos como um esforço de chegada aos trópicos. Há uma tentativa de apreensão do assunto na repetição do retrato do retrato. Um ensaio de outro modo de aprender, de outra forma de saber, não pela leitura enciclopédica, mas pisando firme na terra que se avista. Talvez por isso estejam sobre a única parede branca e clara.

Em outra parede, sem silêncios, diretamente sobre o balcão de recepção da galeria e logo ao lado do nicho onde se guarda este texto, imagens acendem e se apagam em ritmo constante. Cada slide registra os dois lados de um facão, todos pertencentes a uma coleção mantida na Hacienda Buena Vista, uma antiga plantação de cana do período colonial, em Puerto Rico. Em pé, agigantado, enfrentado a si mesmo, cada machete se mostra por inteiro; com todas as marcas de uso gravadas na ferramenta dos canaviais e toda sua força de resistência, gravada na memória por mais de uma revolução.

Em sua carta à filha, escrita em setembro de 1936, Breton diz que é por não conseguir arranjar coragem para expor juntamente com a sua, a vida dela, que não se junta à milícia na Espanha. Foi pelo nascimento da Paula, um ano mais velha que o Runo, que Guiseppe e Diana deixaram a ERP e o país, em 1976. Elas embarcaram no porto de Buenos Aires com escala no Rio a caminho de Barcelona. Ele partiu de ônibus, quarenta horas de estrada, até se juntar às duas no porto fluminense. Trinta e seis anos mais tarde, Runo refez essa viagem por terra. E fotografou todos os pássaros que viu nas imediações da fronteira, desde antes até depois de cruzá-la. Talvez algum seja o mesmo, que, tendo passado incógnito ou inadvertido por cima de todas as cercas, parecia já outro ao estar do outro lado. Talvez algum seja o filho do filho do filho do filho do filho (ou sei lá quantos anos vivem os pássaros) de outro que seu pai tenha visto e desejado acompanhar na ligeireza do vôo, quase invisível.

Eu conheci o Giuseppe ano passado, em Sevilla. Fomos encontrá-lo para filmar More delicate than the historian’s are the map-makers colours. Na mala, além dos presentes da terra distante para o natal que se aproximava, levávamos duas caixas de ovos comprados em Buenos Aires e contrabandeados via São Paulo. Giuseppe se parece com a voz que já tinha ouvido, com as fotos que tinha visto, com os relatos. Ou talvez a memória tenha adaptado fotos, voz e relatos ao que vi, o fato é que ele não me surpreendeu. Tem uma sinceridade que torna as coisas fáceis e uma clareza daquilo que conta na vida, parece. Fué lindo verte con él, y verlo a él como te mira. Lindo que te acompañe en ese esfuerzo inutilmente victorioso. Que esté con vos en ese gesto que de alguna manera continúa lo que él comenzó.

Segue a carta de Breton a sua filha que ainda não lê: também foi pretensão minha que tudo quanto espero do futuro do homem, tudo aquilo que, a meu ver, nos deve levar a lutar por todos, e não, apenas, por um, deixasse de ser uma maneira formal de pensar, ainda que a mais nobre fosse, para se confrontar com a realidade num futuro vivo que sóis vos. Pretendo, eu, que aquilo que juntos esperamos do futuro do homem, que poderia ter-nos levado a lutar por todos e nos trouxe a pensar as formas, se una e se mescle para se confrontar à realidade nesse futuro vivo que ainda não se pode ler.


– Carla Zaccagnini

Obras
Vistas da exposição