Reino de todos os animais e de todos os bichos é meu nome Daniel Steegmann Mangrané

Apresentação

A Mendes Wood DM tem o prazer de apresentar Reino de todos os animais e de todos os bichos é meu nome, a terceira mostra individual do artista catalão Daniel Steegmann Mangrané na galeria. O grupo de trabalhos apresentado nessa exposição coloca duas obras nunca expostas no Brasil ao lado de um novo corpo de trabalho de parede. 

Produzidos a longo de 2013 e 2014 para a Trienal do New Museum 2015: Surround Audience, com curadoria de Lauren Cornell, Phantom (kingdom of all the animals and all the beasts is my name) e Spiral Forest (kingdom of all the animals and all the beasts is my name) exploram um mesmo local na floresta tropical brasileira por meio de duas tecnologias divergentes. Enquanto Phantom usa das mais avançadas técnicas digitais, Spiral Forest foi realizado com tecnologias analógicas e mecânicas, dentre as quais, algumas são quase obsoletas. 

Para a produção de Phantom, Steegmann Mangrané trabalhou ao lado da companhia ScanLab de Londres. Juntos, eles escanearam um pedaço da floresta em point cloud de altíssima resolução. A seguir, o ScanLab tornou o escaneamento acessível visualmente através de um set de óculos de realidade virtual, a partir de uma aplicação Unity. Na parte superior do espaço expositivo, um conjunto de câmeras optitrack traqueiam a posição do espectador no espaço, possibilitando seu movimento pela floresta virtual.  

Para a realização de Spiral Forest o artista colaborou com os engenheiros Nicola di Chio e Stefan Knauer que construíram um Gimbal (suporte articulado que permite a rotação de um objeto em diversos ângulos sobre o mesmo eixo) ativado pelo próprio motor de uma câmera de cinema de 16mm. Assim, ao ligar a câmera e esta começar a filmar, o gimbal também rota seus três eixos (pan, tilt, roll) tornando movimentos e filmagem fenômenos indissociáveis. A sequência de movimentos foi baseada num cálculo matemático entre ângulos de rotação e quadros por segundo, assegurando todas as possíveis combinações de movimentos e direções. 

As diferenças entre os dois trabalhos não se resumem a um mero binômio digital – analógico, mas investigam duas formas de apreensão opostas. Enquanto Phantom se encontra numa sala iluminada, a imagem está fixa e o espetador movimenta-se no espaço real e virtual; Spiral Forest se projeta numa sala escura, onde a imagem está em movimento e o corpo do espetador está imóvel. As possibilidades de exploração fenomenológica que cada tecnologia oferece são de grande importância para Steegmann Mangrané: enquanto o corpo do espetador é girado e revirado na contínua espiral de Spiral Forest, ao se projetar nele e entrar no fluxo da imagem em movimento (chiasmic entanglement, como diria Vivian Sobchack), esse mesmo corpo é desconexo e evaporado na floresta de Phantom, confirmando a pulsão psicastênica da vontade de se dissolver no mundo que o sociólogo e crítico literário Roger Callois falava [1].

A ênfase do artista no uso de tecnologias diversas reside na vontade de explorar como nosso conhecimento da natureza é mediado por estas. Cada nova tecnologia relevante tem mudado nosso entendimento da natureza e nosso lugar no universo, e a cada mudança da nossa concepção da natureza temos sido forçada a uma mudança no entendimento da nossa natureza.  

Quais mudanças infringirão em nós as mudanças que nós provocamos na terra e na natureza nos últimos séculos? 

Distribuídos nas paredes da galeria se encontram cinco poemas de Stela do Patrocínio, tal e como versificados por Viviane Mosé no livro que dá titulo à exposição [2].

A artista brasileira radicada em Berlim, Carla Guagliardi, apresentou a Steegmann Mangrané os poemas de Stela logo após se conhecerem. Estes têm sido uma forte influência para o artista desde então. Stela do Patrocínio viveu no hospital psiquiátrico Colônia Juliano Moreira – o mesmo onde o artista plástico Arthur Bispo do Rosário viveu internado –, local onde Guagliardi fez parte de um programa de artistas visitantes. Lá travou conhecimento com Stela, chegando a gravá-la em diversas fitas cassete. Gravações que depois foram versificadas no livro Reino dos animais e dos bichos é meu nome, finalista do prêmio Jabuti de 2002. 

A singularidade da voz de Stela, assim como a violência/desgarro contra tudo aquilo que o Ego tenta constituir, fechar, armar, segurar, ecoam nestes trabalhos de parede onde os poemas são fragmentados com desenhos geométricos que repetem os cortes da colagem Kiti Ka'aeté (2011), também presente na mostra. 

Se noutras ocasiões os desenhos geométricos de Steegmann Mangrané se sobrepuseram a fenômenos orgânicos de grande complexidade como a floresta, aqui se sobrepõem ao discurso radical de do Patrocinio, registro das contradições e mazelas de sua mente e alma, desconexas e fragmentadas como o texto lacerado pela cegueira da linha reta. 

Surpreendentemente os textos de Stela do Patrocínio parecem repetir as palavras de Merleau-Ponty: Onde colocar o limite do corpo e do mundo, já que o mundo e carne? Onde colocar no corpo o vidente, já que evidentemente no corpo há apenas trevas repletas de órgãos, isto é, ainda o visível? O mundo visto não esta em meu corpo e meu corpo não esta no mundo visível em última instância: carne aplicada a outra carne, o mundo não a envolve nem é por ela envolvido. Participação, aparentamento no visível, a visão não o envolve nem é nele envolvida definitivamente. A película superficial do visível é apenas para minha visão e para meu corpo. Mas a profundidade sob essa superfície contém meu corpo e, por conseguinte, contém minha visão. Meu corpo como coisa visível esta contido no grande espetáculo. Mas meu corpo vidente subtende esse corpo visível e todos os visíveis com ele. Há recíproca inserção e entrelaçamento de um no outro [3].

 

[1] Mímesis e a psicastênia lendaria, Roger Callois 

[2] O título da exposição não é exatamente o mesmo do livro de Stela, mas sim o verso tal e como o artista frequentemente o lembrava. 

[3] O entrelaçamento – o quiasma, Maurice Merleau-Ponty em O Visível e o Invisível.

Obras
Vistas da exposição