Noite longa Paloma Bosquê

Apresentação

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Como a areia não para

de se mexer nem de refletir

o calor dos brilhos, ali ficou a tarde inteira

a criança brincando.

Sentindo a areia entrando nela,

primeiro entre os dedos, depois nos olhos,

boca, nariz, ouvido:

virando uma criança de areia

sem notar que as horas passavam

— Leonardo Fróes

Ao visitar uma casa de chá em Kyoto, o escritor japonês Junichiro Tanizaki conta ter conhecido uma espécie nova de escuridão, à qual chamou de “negrume brilhante” . A atmosfera foi produzida por um painel que limitava o ambiente e se impunha contra a luz vacilante de um jogo de velas. Para Tanizaki, aquela tonalidade que banhava o cômodo parecia possuir pequenas partículas que brilhavam, iridescentes. “Pisquei sem querer, temeroso de que me invadissem os olhos”, arremata o escritor.  

Em Noite Longa, nova exposição de Paloma Bosquê, intui-se, em certos momentos, uma atmosfera tão particular quanto aquela testemunhada por Tanizaki. As esculturas e placas que ocupam a casa compõem, antes de tudo, um conjunto de corpos cuja morfologia alude à de estratos geológicos e à de seres multiformes que, se não habitam os terrenos dessas placas, parecem possuir com eles algum parentesco de assimilação difícil — foram exilados de lá? Têm essas placas como destino?

As placas, robustas e rugosas, são feitas de camadas de fibra de algodão tingida de preto. Sua composição gradativa envolve um jogo de por e tirar,  tirar e por — e, nessa exploração do potencial de acúmulo, sedimentação e erosão da matéria, Bosquê elabora uma espécie de condensação do “tempo profundo”, conceito que, desenvolvido no século XVIII  pelo geólogo escocês James Hutton, se refere ao tempo segundo o ponto de vista das lentas e incessantes transformações geológicas. Nessa síntese de tempo profundo forjada por meio de um processo de composição artística, Bosquê reconhece na geologia e no tempo um caráter escultórico. Um dos amigos de James Hutton, ao deparar com a vista do Siccar Point — promontório rochoso na costa leste da Escócia cujo solo contrastado e cheio de camadas ajudou a comprovar a teoria do tempo profundo —, escreveu: “a mente parecia ficar tonta ao olhar tão longe para o abismo do tempo”. 

O senso de profundidade, nessas placas de Bosquê, se produz a partir de dois fatores: o negrume que compõe esses torrões é matizado pelo contraste sutil entre as várias camadas de matéria, e esse mesmo contraste nos dá a impressão de estarmos diante de uma montanha negativa; além disso, há, nessas placas, pontos revestidos por uma resina e tingidos com camadas de tinta spray que, sobrepostas, provocam um efeito furta-cor. Essas áreas resinadas adquirem um aspecto vítreo ou aquoso, e não parecem ter a profundidade média de um alagamento, mas sim a das fossas abissais — as regiões mais profundas do oceano, onde as placas tectônicas se encontram. Quase um interdito à presença humana, o oceano profundo acolhe formas de vida prodigiosas: lá habitam bactérias, esponjas marinhas, anêmonas e peixes cegos com filamentos fluorescentes, além tudo aquilo que ainda nos é desconhecido. 

As cores furta-cor são consideradas cores estruturais. Mudam dependendo de onde as observamos e da qualidade da luz que incide sobre elas. Exigem não só um posicionamento, mas um constante reposicionamento diante de objetos que, mesmo quando presos a um anteparo, resistem à fixação completa; pelo contrário, revelam-se de formas renovadas e muitas vezes ambivalentes à medida que nos movimentamos diante deles: nas áreas oceânicas e lustrosas das placas de Bosquê, o que a princípio era verde assume tons de rosa, ocre, lilás. Cada cor é ela mesma e, ao mesmo tempo, uma outra.

Assim como as cores se furtam, as figuras presentes em Noite Longa também parecem querer se esquivar de uma definição. Esses seres estranhos, que podem se assemelhar tanto a remanescências quanto a fisionomias algo monstruosas, apontam, enfim, para formas de vida inclassificáveis. E eles estão à espreita, um pouco inquietos, talvez prestes a fugir sobre os pés ausentes ou mal-formados. Essas figuras fugidias, cujos poucos membros têm aparência descarnada, são, ao mesmo tempo, singulares e bipartidas, o que levanta questionamentos acerca da noção de unidade. Uma das esculturas, por exemplo, é uma figura cor de concha que parece forjada por dois fios torcidos em uma espécie de espiral — dois membros que ao mesmo tempo se evitam e se confundem. Até que ponto um objeto, ou um corpo, pode ser considerado um todo? Um objeto cindido é capaz de manter alguma unidade? — pergunta a artista. Nosso próprio corpo não se desprende de si próprio recorrentemente, exigindo de nós um esforço cotidiano, enquanto sujeitos, de reinvenção de nossos limites individuais? — eu pergunto. Em suas Falas curtas , a poeta Anne Carson conta uma anedota sobre os últimos dias da escultora Camille Claudel, que morreu internada em um hospício: “Recusava-se a esculpir. Embora lhe dessem pedras do sono — mármore, granito e pórfiro — ela as partia, depois juntava os pedaços e os enterrava à noite fora dos muros”. 

Paloma Bosquê esculpe seus seres improváveis — e, quem sabe, desenterrados  da areia — num processo que envolve uma certa simpoiese (fazer com), como se lhes desse tempo para que demandem, em certo momento, serem partidos em dois, se inclinarem preguiçosamente para um lado ou outro, perderem seus membros ou mesmo se desfazerem por completo. De maneira similar, as placas são compostas a partir de uma dinâmica de reciprocidade entre as mãos da artista e a pele da superfície topográfica.

A introdução da cor no trabalho de Bosquê, que anteriormente se detinha sobretudo às tonalidades de preto, cru e variações de branco, talvez acompanhe o interesse que a artista demonstra há tempos pelo sol — presente já em In the Hot Sun of A Christmas Day (2019), noite não noite sim (2020) e, mais recentemente, em Three Suns, instalação que apresentou em Basel em 2023. Mas, na abordagem de Paloma, o fenômeno solar — que possibilita a visão das cores e também a vida na Terra — nunca se manifesta de forma óbvia ou meramente reverencial. Se a noite sempre foi tida como o berço do mistério, hoje Bosquê reivindica que, sob a luz, há tanto enigma quanto na escuridão. O sol a pino, por exemplo, é uma espécie de engano: em vez de converter tudo em evidência, ofusca a vista — as cabeças se voltam para baixo, as mãos são levadas à testa para fazer sombra no rosto —, tornando o dia pleno também fonte de equívocos. E é só sob o sol que existe a miragem.

Em seu trabalho, Bosquê acolhe a luz como fator exógeno elementar e como desafio — é possível filtrá-la, contestá-la, mas também inventá-la e atraí-la com cores que a refletem e confundem — confundindo também nossos pontos de vista, num lembrete de que eles nunca são unívocos. Os corpos que compõem Noite Longa, em sua textura e composição tonal escapadiças e mutáveis, como que pedem para serem revisitados na penumbra, sob a luz de umas poucas chamas, tal qual na casa de chá que Tanizaki conheceu.

 

Gostaria de descobrir se, nesta casa anoitecida e iluminada apenas pela lareira acesa, eu sentiria as partículas luminosas das fossas furta-cor invadirem meus olhos, como vaga-lumes ou grãos de areia iridescentes. E se os versos das placas espessas que comportam o abismo do tempo ainda projetam sombras coloridas — auráticas, rutilantes – nas paredes que estranhamente as sustentam. 

 

— Julia de Souza

Obras
Vistas da exposição